Portugal assistiu, neste contexto de III República, a dois referendos a pretexto da liberalização da prática do aborto: em 1998 e em 2007. Merecendo séria e coerente discussão a legitimidade da sua realização – atendendo a que entregou à decisão de maiorias a deliberação sobre se a vida de alguém poderia fazer-se de conta que não merecia protecção -, contudo, estes referendos serviram para constatar o carácter movediço dos argumentários que tentavam legitimar aquilo que a razão demonstrava ser insofismável: que a vida humana é um contínuo e, como tal, são inconsequentes todos os argumentos que procuram definir um critério subjectivo para marcar se estamos diante de uma vida humana ou não.
Ouviram-se argumentos estranhos como os daqueles que se referiam ao filho em desenvolvimento como sendo «uma coisa que a mulher tem dentro de si» ou «aquela parte do corpo da mulher que tem um código genético diferente do dela». Alguns foram, mesmo, mais longe, argumentando que, enquanto não há dor nem sensação, não estamos perante um ser de natureza humana, tratando-se, apenas, de «material genético».
Curiosamente, a história demonstra que, sempre que o ser humano pretendeu legitimar comportamentos, que sabia serem inaceitáveis, recorreu a uma objectualização do outro, isto é, reduziu-o a «coisa», a um «outro estranho», diferente de si e, por isso, inferior a si por não ser da sua mesma natureza: assim aconteceu nos contextos de perseguição por motivos de racismo, de intolerância religiosa ou política… O outro é sempre, nestas perspectivas, um estranho sobre o qual parece poder-se exercer violência.
Pois bem, o que os debates desenvolvidos, em contexto de referendos, vieram demonstrar foi que o ser que se desenvolve no seio da mãe é um de nós, porque está numa etapa pela qual nós mesmos passámos. Ele é, apenas, um de nós mais novo do que nós. E quando estamos certos disto, esse de nós merece toda a nossa atenção, mesmo que pretendam justificar a sua eliminação. Foi estranha, por isso, a decisão do legislador e, particularmente, do Tribunal Constitucional (numa relação de 7 juízes a favor e 6 contra), que considerou haver dúvida sobre se a existência «desse de nós» mereceria menos protecção do que a opinião de que ele não merecia ser considerado um de nós. Venceu a opinião sobre a realidade. Instaurou-se, como refere Giovanni Sartori a propósito da influência da comunicação social sobre as decisões dos povos, uma espécie de «ditadura da opinião». A opinião – que muda e oscila de acordo com as influências – determinou a legitimidade do fim de vidas que não podem ser retomadas, porque não podem ser interrompidas.
Urge, por isso, reconquistar a sensibilidade ética que reconhece no outro, qualquer que seja a sua idade – mesmo que tenha menos de dez semanas de vida -, um igual a nós. Este é um princípio que não se esgota nos inícios da vida, pois também no fim da vida é acutilante – aquele que a idade parece já ter esgotado não perdeu dignidade de humano por estar mais débil. Pelo contrário, a sua debilidade exige compromisso e não indiferença de todos. A indiferença é, com efeito, o contrário da sensibilidade ética.
Luís Silva
Sócio fundador e presidente da direcção da ADAV-Aveiro
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